Parte Dois do conto longo "Canção para Melusine"
III
Azul. Todos os tons de azul e bolhas. A menina queria rir, mas tapava a
boca com a mão. E se entrasse agua e ela se afogasse? A foca assinalou que ela
não precisava ter medo e fez com que ela soltasse ambas as mãos para nadar.
Assim era mais rápido. A foca tinha pressa e a menina respirava miraculosamente
na água azul e salgada. Um cardume de peixes coloridos. Uma arraia gigantesca.
Uma anêmona dançando solitária e um peixinho verde que se aproximava para
beija-la. Tinha tanto para ver, mas a foca puxava a menina mais e mais. E a
menina começou a se cansar. Quis parar. Quis voltar, mas a foca insistia em
continuar nadando.
E no meio daquele azul a menina sentiu algo que a puxava. Era um buraco
redondo no fundo do mar, na areia. Era um ralo puxando a água. A foca nadou
para ele e sumiu. A menina quis aproveitar para voltar. Algo não estava certo e
agora ela sentia isso. Nadou na direção contraria, mas quanto mais tentava,
mais próximo ficava do ralo. Por fim foi sugada e caiu contra uma roseira. Sua
carne salpicada de pequenos pontos vermelhos. Bolinhas vermelhas em um fundo
claro. Ela gemeu e choramingou. Então ficou quieta. A dois passos a frentes
estava aquela mulher. Jamais esqueceria o que sentiu quando viu a criatura em
sua forma humana pela primeira vez. Era como contemplar o inferno e o céu ao
mesmo tempo. As gotas de água brotando e escorrendo ao longo da pele bronzeada.
Os cabelos úmidos escorrendo lisos pelas costas nuas. O vestido de pele colado
em toda a extensão do corpo longilíneo, formando um círculo no chão e ninguém
saberia dizer onde terminava a pele humana e onde começava a pele de foca. E os
olhos redondos, duas esferas inteiramente negras. A criatura sorria.
- Muito jovem! Muito jovem! - a velha encarquilhada repetia, enquanto
examinava a menina sem qualquer delicadeza. A pequena chorava baixinho. A foca
estava na sala e ela não queria que a foca se irritasse. Tinha medo.
- Porque não trouxe uma mais velha? A mãe dela, por exemplo? - a velha
enquanto perguntou enquanto virava a
menina de cabeça para baixo, segurava-a pelos calcanhares como se faz com os recém-nascidos,
os dedos longos terminando em garras sujas. A foca não respondeu. Caminhou pela
sala da velha. As paredes de pedra iluminadas apenas pela lareira e alguns
candelabros, o vestido de pele arrastando no chão. Aproximou seu rosto da
menina de cabeça para baixo, provocando um estremecimento na cativa. A foca
tocou as bochechas rosadas, marcadas pelos espinhos da roseira.
- Ela servirá. Faça o combinado e me entregue a encomenda quando ela
estiver pronta.
A velha largou os pés da menina e fez uma reverência desajeitada a foca.
Depois manquejou para uma grande estante repleta de potes grandes e pequenos.
Escolheu os que tinham conteúdos vermelhos e azuis e depositou-os sobre a mesa
de madeira rustica. A menina olhava a velha entre curiosa e aterrorizada. Era
quase do seu tamanho, pouco mais alta, gorda e rosada como uma leitoazinha, os
cabelos brancos e eriçados soltos, tão compridos que as pontas ralas chegavam
ao chão.
-Jovem demais. Jovem demais! Mas quem disse que elas se importam? Eu era
velha já quando me trouxeram para cá e elas não se importaram também. Se as coisas aqui
fossem certas, se quando chovesse a água tocasse o chão e não o céu, se quando
fossemos para o sul não chegássemos ao leste, então eu já estaria liberta dessa
vida miserável, então eu estaria quieta e feliz debaixo de um tumulo. Mas aqui
nada é certo, pequenina. Aprenda isso e será menos doloroso - Disse a velha,
pouco convincente, enquanto pensava que
nada ali seria menos doloroso. - Você deve estar com fome? A Senhora Aquática
certamente não se preocuparia com tal pormenor. Vejamos o que eu tenho aqui
para você, menina.
E a velha abriu um grande armário.
Nele era possível ver pudins de cores variadas, bolos decorados com frutas
secas, taças de sorvete azul cobalto salpicadas de algo brilhante, bolos de
caneca e pequenos docinhos em forma de bichos sorridentes. A menina não comia
nada desde o almoço e sentiu o sabor da cada doce, mesmo sem ter provado
nenhum. Queria todos, mas a velha escolheu uma grande torta cor de verão e
outono: morangos enormes e vermelhos e arabescos desenhados com creme de
chocolate. A velha colocou a torta na mesa e olhou para a loirinha, seus olhos
frios e nevados. A menina receou por alguns segundos, mas a torta era bonita e
cheirava bem. Lembrava as tortas que sua avó fazia. E a menina sentia cada vez mais
fome. Mais e mais, como se não comesse nada há muito tempo. Apanhou um bocado
do bolo com a mão e levou a boca. Era bom. Ela sorriu e a velha também.
A menina devorou a torta inteira e quando terminou parecia que poderia
comer outra e outra depois dessa. Então sentiu uma imensa dor de barriga e lembrou-se
de como sua mãe a proibia de comer tanto doce. "Você vai passar mal"
repetia uma Amélia risonha que colocava um bocado generoso para a filha não
pedir um segundo pedaço. A pequena gritou pela mãe quando as dores ficaram mais
intensas, irradiando por seus membros, a cabeça a ponto de explodir. A velha observava
impassível. O vestido azul que se rasgava, não cabia mais naquele corpo. As
pernas e braços que se alongavam. Os cabelos que cresciam instantaneamente,
volteando em cachos. Voltas. Corpo se retorcendo. Dor. Ela gritava.
"É tempo" pensou a velha e foi pegando cada um dos nove potes
que havia escolhido. Despejou o primeiro sobre os cabelos da menina e do vidro saíram
minúsculas pérolas que se agarraram aos fios levemente úmidos. Um pote vermelho
foi despejado ao longo do corpo e ardia quando tocava a pele. E a pele se
tornava branca e lisa como a barriga de um golfinho. Ela gritava. No meio do
grito a velha aproveitou os olhos esbugalhados da menina e arrancou-os com suas
unhas finas. No lugar colocou mais pérolas redondas, negras e brilhantes. Mais
um pote e pequenas escamas translucidas surgiram salpicadas no corpo que se
contorcia. Potes e dores e gritos.
Então houve o silêncio. A menina não sentia as pernas, não sentia dor,
não sentia nada mais e pensou que tivesse morrido. E ficou feliz com tal
pensamento porque se fosse assim não sentiria mais nada e sua avó a protegeria
no céu. Ninguém mais faria mal a ela.
- Levante querida. Levante. Já acabou. - A velha dizia. - Você já não tem tempo para dormir. Logo a
senhora mandará alguém te buscar. Vamos, abra os olhos.
Ela abriu os olhos devagar. Era a mesma sala onde estava antes, mas
havia algo diferente, algo borrado, algo cintilante. A velha a ajudou a
levantar-se e ela gritou ao olhar para as próprias pernas. Pernas? Onde estavam
suas pernas?
- Shiiii - a velha colocou um dedo sujo e nodoso sobre os lábios da
menina e apontou um canto da sala onde ficava um grande espelho velho, pontos
pretos espalhados pelas bordas. A imagem refletia a velha como a menina via e
ao seu lado uma criatura estranha. Gotas de água escorriam por sua pele e aqui
e ali era possível perceber o brilho multicor de uma escama. Os cabelos úmidos
caiam pelas espaduas como anêmonas volteando no fundo do oceano. Pérolas de
vários tamanhos, salpicadas ao longo do comprimento do cabelo. Uma nuvem
dourada que se esparramava sobre a mesa onde ela estava sentada. Era uma mulher
bem talhada, nua da cintura para cima. E da cintura para baixo se estendia uma
forma comprida e alongada, recoberta por escamas argênteas como o corpo de uma
serpente marinha. E a menina cobriu-se com as mãos. Suas mãos longas e brancas
terminavam em unhas pontudas como as da velha, mas suas unhas eram translucidas
e cintilavam em tons nacarados como se fossem feitas de madrepérola. Seus olhos
negros, pérolas reais, se fecharam e abriram várias vezes. Os cílios molhados e
uma única lágrima, brilhante como um pedra preciosa recém-polida, escorreu
pelas bochechas agora adultas.
- Não a nada tão belo quanto a inocência presa em uma gaiola preciosa.
Nem tão triste quanto o destino de uma criança perdida. - completou a velha,
lambendo a lágrima que escorria. Sua língua bifurcada como a de uma cobra.
Nenhum comentário:
Postar um comentário