CANÇÃO PARA MELUSINE - Parte II

Parte Dois do conto longo "Canção para Melusine"
Antes de ler este aqui é melhor começar pela parte I  Neste link

II
Into Dust by Mazzy Star on Grooveshark

Os sapatos! Os sapatos na areia! Amélia correu para as ondas, gritando, procurando. O nome da menina ecoava na praia desértica. A luminosidade do sol e da lua se mesclando naquele momento em que já não é dia, mas também ainda não é noite. Ela era boa nadadora e o mar estava estranhamente plácido, mesmo assim não encontrou nada que pudesse contar que sua filha entrara naquelas aguas. Dela restavam apenas os sapatinhos brancos esquecidos na areia.


Amélia era forte! Quem não poderia admitir tal verdade? Era forte e mesmo com o coração rasgado ainda reuniu o que pode de sua lucidez e guardou os sapatos da filha no bolso, antes de correr para casa. Ainda podia haver esperança. Amélia contaria ao marido e eles reuniriam as pessoas da cidade em grupos de busca. Poderiam sair de barco e talvez achar o que ela havia perdido. Entrou aos gritos em casa, gritando ordens, contando que a filha estava sumida, tanto barulho somente para ser abraçada e silenciada pelo marido. Ele apontou para a sala de jantar e lá estava ela, sua filha, de banho tomado e cabelos penteados, sentada a frente de um prato de sopa, fazendo birra para não jantar.
- Ela está bem! - o marido afirmou com sua voz calmante - Disse que você havia adormecido e não acordava. Então a pobrezinha ficou com medo porque já anoitecia e voltou para casa. Não é surpreendente que mesmo sendo tão pequena não tenha se perdido no caminho? Eu mesmo cheguei agora a pouco e já estava saindo para te procurar!
Amélia continuava boquiaberta. Aquele havia sido o pesadelo mais real que havia tido em toda sua vida. o mais assustador, o mais esmagador! a sensação de incapacidade, de não poder salvar a própria filha ainda deixava um gosto amargo em sua boca, ainda assim ela estava lá, não estava? Então aquilo tudo não poderia ter sido mais que um pesadelo, não é verdade?
O marido  dizia com voz suave que ela deveria tomar um banho, pentear-se, arrumar-se para jantarem. E ela se deixou levar pelas escadas, apaziguada pelo sentimento de normalidade ao encontrar sua casa como havia deixado, seu marido e sua filha aguardando-a no térreo. Seu banho já estava pronto, a banheira cheia de agua morna. Então Amélia acreditou que tudo estava correto e começou a se despir. Foi quando se lembrou dos sapatos da filha que ainda estavam no bolso. Então correu, só para ter certeza, só para sepultar a duvida que cismava a permanecer em sua cabeça. Correu até o quarto da menina. Da porta viu a roupa usada na praia estendida em uma cadeira. O vestido azul, enfeitado por dois laçarotes, as fitas brancas que prendiam os cabelinhos em dois rabos de cavalo, as meias enfeitadas e ao lado da cadeira um par de sapatinhos brancos. Exatamente iguais aos que Amélia segurava nas mãos.
Do lado de fora a casa de praia era uma visão delicada. A luz amarela fugindo das janelas e se esparramando sobre o jardim bem cuidado. As flores recém-desabrochadas se vergando ao comando do vento noturno. Tão suave como uma valsa. O cheiro de maresia se entranhando através das frestas abertas.
Só os gritos de Amélia destoavam o cenário.
***

A velha senhora vivia cansada há anos e era bastante natural que isso acontecesse, afinal já tinha mais de 80 anos e tantas memorias marcadas naquele corpo agora enrugado e encarquilhado. "Bah!" murmurava para si mesma ao lembrar-se da maldita osteoporose que a obrigava a andar com aquele andador! "Isso lá é digno?" dizia sempre a senhorinha quando encontrava algum de seus médicos. Mas naquele dia se sentia estranhamente nova e bem, na verdade pensava até que poderia andar sem a ajuda daquela gerigonça. "Por que não?" pensou e abandonou o andador, a princípio se apoiando nos móveis e nas paredes e, depois de algumas passadas, conseguiu caminhar sem subterfúgios. Seu equilíbrio ainda instável vencendo de passinho em passinho a distancia do quarto a sala de estar. 

Parou a entrada da sala. Estava escuro e ela preferiu assim. Com as mãos tremulas pegou no bolso uma lanterna. A luz débil caiu sobre as cinzas da lareira, sobre a almofada remendada deixada sobre a poltrona, sobre a parede azul turquesa. Ela caminhou um pouco mais e iluminou uma parede repleta de quadros. Molduras diferentes, tamanhos diferentes, fotografias coloridas, em sépia, preto e branco. Em uma moldura velha, bem próxima ao teto uma garotinha loira sorria, seus dentes brancos como os laços de fita prendendo seus cabelos. Mais abaixo a mesma garotinha sentada no colo de uma mulher de cabelos escuros, a saias longas que já não se usam há muito tempo. Ao lado, em uma moldura pequena estavam a menininha um pouco maior, de mãos dadas com um homem alto, e a mesma mulher mais afastada do grupo, seus olhos insensíveis que não diziam mais nada.

A luz da lanterna passeou pelas molduras e pelos momentos capturados. Sempre a mesma  loirinha em uma metamorfose que ia de menina a mulher, de cabelos cortados na altura da orelha, cachos feitos de bobs. De filha a esposa coroada de flores do campo. De esposa a mãe fazendo castelos de areia com dois filhos pequenos, figura de maiô largo na praia deserta. Havia sido uma vida boa, pena que não era a vida dela.

A senhora caminhou novamente através da sala. Seus passos bem mais firmes. Acomodou-se na poltrona vermelha e passou os dedos longos e enrugados pelos cabelos prateados. O coque ainda estava bem preso com grampos. Agora  sabia. Agora lembrava aquela receita estranha, cantada em versos: um pedaço de fita, uma boneca quebrada, um cacho dourado, uma parte de sombra cortada, tão fina como a seda. Era disso que ela era feita. Antes não lembrava, não podia lembrar! Antes estava ocupada em viver a vida que não era dela! Eram tantas preocupações. O pai que implicava com seus namorados. O marido que preferia jogar carteado a trabalhar. O filho mais velho que acabou preso. A filha adolescente grávida. Não era de reclamar, mas sabia que nada daquilo havia sido um conto de fadas para ela. Não o conto de fadas havia sido da outra e como essa outra era desafortunada por.

O que ela havia vivido? Ela teria mesmo vivido?

Não saberia dizer. Não antes e quanto mais agora, a diferença é que da noite passada para essa a senhorinha começou a lembrar. Lembrou-se do que era feita. De como havia sido feita e para qual proposito. Compreendeu porque a mãe jamais a aceitou, jamais teve um gesto de carinho para ela, um único olhar de aprovação. Ela sabia. Ela sempre soube que sua filha não voltou para casa após uma tarde de brincadeiras na praia. O que havia voltado era a própria senhorinha, muitos anos atrás, muito mais nova do que os anos acusavam agora.

A filha verdadeira, a filha perdida estava retornando agora, quase setenta anos atrasada. A velha senhora ajeitou os óculos na ponta do nariz. "Não, a perdida não encontrará mais sua mãe" pensou e puxou um revolver detrás de uma das almofadas. Carregou a arma e colocou o silenciador. Estava pronta e agora esperaria.  Pegou o controle remoto e zapeou até achar  o canal da novela. Naquele capitulo haveria o casamento da mocinha e do galã, mas a vilã revelaria que estava grávida e os separaria de uma vez. A senhorinha não gostava da vilã e torcia pelos mocinhos. Pegou um biscoito amanteigado com a mão esquerda. Com a direita continuava a segurar o revolver.
Balas de ferro. Balas para enterrar qualquer conto de fadas.

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