CANÇÃO PARA MELUSINE


Antes de tudo é necessário dizer que esse texto (e os próximos porque é uma estória a ser finalizada) é um projeto para uma personagem de RPG dentro do cenário Changeling: The lost.  A ideia era explorar as diretrizes do cenário com um desejo antigo de ter uma personagem ligada à vida aquática. Mas interessante deixar claro que, embora a personagem seja direcionada para o cenário de Changeling, eu preferi ter uma visão mais abrangente e não me prender ao que é proposto no jogo.

Quem quiser ler mais sobre o jogo Changeling: The lost encontra um bom material nesse link:
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I

Rosas e espinhos.  Espinhos que cortavam sua pele, rasgavam seus pés descalços. As rosas abertas ainda mais vermelhas. Ela corria. Corria e chorava através da floresta de espinhos que parecia não ter fim. Os galhos emaranhando-se nos cabelos claros.  Urros atrás dela, ao longe. Teriam soltado as feras? Ela sentia tanto medo. Tanto medo que seu coração poderia parar. Seus pés poderiam parar de correr e talvez tudo terminasse rápido, em um segundo no qual sua carne seria dilacerada por mil dentes afiados. Mas ela corria, entre lágrimas e espinhos, apesar de ser apenas ela. Corria.








***

Os cabelos claros dançavam com o vento e a areia. Ela sorria aquele sorriso do inicio dos tempos, tão jovem e tão inocente. As ondas indo e vindo, participando da brincadeira daquela menina descalça. A espuma desfazendo-se na areia molhada. Ao longe a dama observava a filha, do alto de uma pequena colina verde. No seu colo o caderno de desenhos mostrava seu trabalho inacabado: a praia salpicada de gaivotas, a brincadeira da menina e das ondas, a luz do sol antes do meio dia. A mulher se levantou, sacudindo a terra das saias longas. Ajeitou seu chapéu. O laço desfeito pelo vento brincalhão e chamou a menina. Boa menina que não demorou a obedecer a mãe, oferecer-lhe suas mãozinhas gordinhas para voltarem a casa grande, pintada de azul, tão bonita de perto e de longe.

Na praia ficaram as gaivotas, as ondas... e aqueles olhos verdes, tão antigos como o oceano, olhos inumanos sobre a menina de cabelos loiros.

***

A mãe dormia ou sonhava de olhos abertos? Estava deitada em sua colina, seus materiais de desenho espalhados pela grama verde. Ao longe via a silhueta da filha, brincando de desafiar as ondas a pega-la, como sempre fazia. Viu a menina brincar com um animalzinho novo, recém-saído das águas. A filha ria, ela podia ouvir as risadas ao longe, absolutamente deleitada com o animal. Eles conversavam? Eles conversavam!

- Você fala! - a menina exclamou. As mãozinhas gordinhas sobre os lábios

-Claro que eu falo, sua bobinha! Todos os seres vivos falam! Mas não na frente dos humanos. Somos tímidos!

Ao longe a mãe gritava, mas nenhum som saia de seus lábios anestesiados.

- Mas eu sou humana e você esta falando comigo!

- Sim, mas você é diferente - respondeu a foca - Malditos cavalos marinhos! Eu não deveria ter falado isso e bem... já está tarde! Já me vou!

- Não! Por favor, fique!

- Eu já falei mais do que devia e estão me esperando para o jantar!

- Mas ainda é cedo! Por favor! - a menina pediu, se colocando entre a foca e o mar imenso e verde daquele dia ensolarado. A foca fez um meneio com sua cabeça e continuou onde estava encarando a menina com seus olhos verdes, redondos.

- Por que você disse que eu sou diferente? Pode me contar! Eu sou boa com segredos e juro que nunca contarei nada a ninguém! Juro por Santa Brígida!

A foca pareceu conter algo em seu intimo, um fugaz lampejo de ódio nos olhos, um rugido que ficou preso na garganta, mas quando falou sua voz era engraçada e amável a menina.

- Eu não sou mesmo uma foca. Não totalmente. - E movendo a nadadeiras de uma forma estranha, ela separou pele e carne e do que antes parecia um corpo de foca, surgiu um braço perfeitamente humano. A foca sorria com a boca fechada, seus braços finos como os de uma  mulher agitando-se na areia como se ainda fossem nadadeiras. A menina sorria deleitada, lembrava-se de estórias como aquela. De focas que também eram gente. A palavra para ela estava na ponta da língua, pronta a ser dita em voz alta, mas a foca colocou um dos dedos nos lábios da menina, silenciando-a.

- Mas esse não é o segredo!

- E qual é então? - a garotinha perguntou, sentada ao lado de sua amiga foca. As ondas indo e vindo, douradas pelo crepúsculo.

- A verdade é que nós somos parentes. Não vê? Você gosta tanto do mar, assim como eu. Não é porque o mar é bonito e você gosta de brincar com ele. É que ele também é seu lar. Não faz muito tempo assim, alguém como eu veio nestas mesmas areias e conheceu sua avó. Ele sabia que se a fizesse sair totalmente, surgir como humana, ele poderia roubar algo precioso e fazer dela sua esposa.

-Minha avó! Mas ela –a menina silenciou por um momento - Ela morreu tem alguns meses. Eu me esqueci de como era o rosto dela, mas me lembro de que ela sorria quando me via chegar com mamãe da praia e que me esperava com algum doce no forno.

- Não seja boba, menina! Ela não morreu! Ela apenas recuperou o que havia sido pego e retornou ao seu lar verdadeiro. Nós sofremos muito quando não podemos retornar ao mar! Nadar entre os corais! Ver o por do sol através das aguas. Brincar com os cardumes de atum e com os golfinhos.

- Você viu golfinhos? E corais? E cardumes inteiros?

- E a sua avó também! - Completou a foca, seu olhos redondos brilhando - Você quer revê-la? Eu posso te levar!

A menina pareceu dividir-se entre dois grandes desejos. Entre o dever de ficar com a mãe e as delicias de conhecer o mar, levada pela sua amiga foca. Ela olhou para a colina onde sabia que a mãe a observava e a viu deitada, adormecida, os cabelos escuros voando  encobrindo parte de seu rosto. Inconscientemente ela segurou com força o pingente preso ao seu pescoço por uma corrente de prata. Um cavalo marinho brilhante, presente da avó.

- Voltaremos antes que ela acorde! - A foca assegurou e a menina pareceu tomar uma decisão. Tirou os sapatos de boneca e as meias brancas. A foca lhe estendeu sua mão de mulher e as duas criaturas, tão diferentes caminharam em direção da água. Estava fria, mas a menina não pareceu perceber e continuou andando mais e mais para o oceano, a agua engolindo seu corpinho até que a restava apenas a cabeça loura enfeitada por laços brancos. E então desapareceu.

Nesse momento a mãe despertou por completo. Seu grito retido por tanto tempo ecoando na praia deserta. Nas ondas que continuavam a ir e vir. Nas gaivotas voando no céu pintado de vermelhos e laranjas. Nos sapatos da menina beijados pela espuma do mar.

***

Os granidos pareciam mais próximos e ela chorava mais. Espinhos da roseira  tingindo de vermelho a seda do vestido. Tentara fugir uma vez antes, mas não tivera sorte de morrer no caminho. Tinha sido pega e levada de volta. Jamais esqueceria o que houve em seguida. Ela apertou o pingente em forma de cavalo marinho com as mãos tão brancas. Os espinhos, as rosas, a escuridão, nada era pior do que retornar! Não podia ser pega dessa vez. Não dessa vez!

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